RELATÓRIO
Foi a recorrente autuada sob a acusação de ter deixado de recolher ICM sobre operação tributada, indicando na nota fiscal que a operação era abrangida pela isenção concedida a barcos de pesca (art. 5ª, inc. XLIV), ainda amparada pela resposta à Consulta N° 916/81.
O lançamento ocorreu em Posto Fiscal de Fronteira, mercadoria em trânsito, isto porque o fisco classificou os barcos como sendo de passeio, isto é, recreação.
A defesa negou a qualidade de embarcações de recreação aos produtos que transportava, os quais construídos de acordo com licença concedida pela Capitania dos Portos, como embarcações utilitárias. Citou ainda que em outro caso de idêntica apreensão, tinha sido anulado o auto de infração, enquanto a resposta à consulta lhe amparava.
A decisão proferida pela SJ, no sentido de cancelar o lançamento foi reformada em recurso de ofício, para manter o mesmo, daí o recurso ordinário, onde repete a recorrente a sua posição constante na peça de defesa primeira.
Nova e extensa manifestação fiscal se encontra a fls., defendendo a acusação, repetindo que em nenhum momento a recorrente tinha trazido para os autos prova de que os barcos não se destinavam à recreação.
Tendo a recorrente protestado por sustentação oral, devolvo o processo para a devida intimação, adiantando que proferirei o meu voto após a sua realização.
V O T O
Devidamente intimada a recorrente para a sustentação oral requerida, deixou de comparecer à sessão designada, contentando-se em apresentar memorial onde repete, em linhas gerais, o que dos autos já constava.
A matéria é árida, isto porque a isenção estabelecida no artigo indicado faz restrição aos barcos destinados à recreio e esporte. Todos os barcos seriam então isentos, com exceção daqueles destinados ao esporte.
Ora, mais uma vez nos deparamos com a situação de que só o efetivo destino de um produto poderá levá-lo à tributação, a menos que o seu uso não admita outro que não aquele devidamente qualificado.
A questão destino, como já expressado por mim em outros votos, segundo Pontes de Miranda, "in" "Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda de 1969", é a propriedade que um produto tem para ser empregado num determinado fim. Registrou o saudoso mestre:
"DESTINO OBJETIVO - é a qualidade que tem o produto para ser empregado ou usado com determinado fim. De ordinário, o produto tem um fim único, ou principal. Pode, todavia, ter dois ou mais, similares ou sem qualquer parecença. Se do conteúdo de negócio jurídico não se tira, por estar explícito ou implícito, qual o fim a que se destina, di-lo o uso do tráfico. Algumas vezes, as leis estabelecem uso necessário, ou necessário quanto a determinada quantidade do produto.
DESTINO SUBJETIVO - é o que concerne ao destinatário, ou a terceiro, para quem haja de ir o bem... O bem pode ser subjetivamente destinado em virtude de seu destino objetivo, se só o usa ou consome uma pessoa física ou jurídica, ou só o usam ou consomem algumas pessoas físicas ou jurídicas, ou algum grupo de empresas. Então, a subjetividade é resultante das circunstâncias, e em verdade o trato é o mesmo do destino objetivo."
Resta então entender qual o significado estabelecido pelo legislador paulista ao estabelecer a isenção, bem como determinar a quem ela era dirigida.
Enquanto o jurista Pontes de Miranda diz que destino objetivo é a qualidade que tem um produto para ser empregado ou usado com determinado fim, enquanto que ao destino subjetivo, desde que destinado a um determinado grupo, deve ser dado o mesmo destino do objetivo, considerando que Aurélio Buarque de Holanda enumera em sua conhecida obra - dicionário -, os diversos significados do termo destinar, assim consignando: determinar, decidir, resolver, designar, reservar, reservar para certo fim, dedicar-se, consagrar, resta ao intérprete, frente a colocação dos termos destinado à recreação e esporte, apontar a quem era dirigida a norma de isenção, bem como o momento de aferição da falta de atendimento à condição isencional e também a responsabilidade pelo ato.
Diante do texto expresso no inc. XLIV, do art. 5ª, do RICM (Dec. n° 17.727/81) e da lição de Pontes de Miranda, conceituada a isenção como a posta na norma, como a operação de circulação que envolvesse embarcações não destinadas à recreação e esporte, isto é, DESTINAÇÃO OBJETIVA, concluo que dirigida ela ao contribuinte vendedor no caso de poder o barco se prestar a qualquer ato não classificável exclusivamente como de recreação e esporte. A condição estar apto o barco a ser utilizado como utilitário autorizava a aplicação da isenção, e a conseqüência pelo descumprimento do uso aplicável ao comprador, nunca ao vendedor, aquele como responsável, desde que estabelecido em lei.
Só assim posso entender, por faltar lógica, estabelecer uma condição para a isenção, que não poderia ser atendida, quer por ação, quer por omissão, pelo contribuinte, isto é, aquele diretamente ligado ao fato gerador, ou seja o sujeito passivo da obrigação tributária, que adquiriu uma embarcação para comércio, destinado ao uso como utilitário, que passou a ser usado para outro fim, que não o previsto como amparado pela isenção. A própria seqüência cronológica impediria, "a priori", se estabelecer que um barco fosse usado para isso ou aquilo, desde que possível as duas hipóteses, sendo uma só isenta.
Tampouco me sensibiliza a argumentação de que o contribuinte deveria ter sido, no mínimo diligente o suficiente para exigir do comprador uma declaração de uso futuro específico. Isto porque esta de nada serviria diante do estabelecido no art. 123 do CTN, salvo disposição de lei.
Por isso a sempre atual lição de Kelsen, quando distingue entre obrigação e responsabilidade, dizendo que: um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma sua conduta oposta é pressuposto de uma sanção, enquanto juridicamente responsável quando contra ele é dirigida uma sanção (Problemas Escogidos de la Teoria Pura del Direcho - Ed. Guilhermino Kraff, 1952, págs. 78/79 - Buenos Aires).
Assim, penso que se um terceiro comprou um produto que estava apto a ser usado como utilitário na pesca, transporte, busca e salvamento, com isenção, norma causa da mesma, pagando, portanto menor preço, já sabendo ou não que seu uso seria desvirtuado, impunha-se tivesse a norma isencional já estabelecido a sanção, o que no caso não aconteceu.
A norma de isenção como posta na legislação vigente à época, estava incompleta diante da figura do responsável, no qual se colocava o comprador do produto isento sob condição, que não atendia esta, o que embora possa chocar, impede a penalização do contribuinte, diante dos princípios norteadores do direito tributário, dentre eles, por certo os mais importantes: da legalidade e tipicidade cerrada.
Tanto é verdadeira a situação, que atento o legislador paulista ao fato, cuidou de suprir a falha anterior, estabelecendo, em casos como o dos autos, estava-se diante de uma relação de responsabilidade e não de sujeição passiva direta, e que em havendo desobediência deveria o violador da condição isencional responder pelo tributo e multa devidos. Isto se vê no art. 12 do atual Regulamento do ICM, quando registra:
"Artigo 12 - São responsáveis pelo pagamento do imposto devido:
(...)
X - a pessoa que, tendo recebido mercadoria ou serviço, beneficiado com isenção ou não-incidência sob determinados requisitos, não lhe der a correta destinação ou desvirtuar sua finalidade."
A questão como vista, a meu ver sempre foi de responsabilidade, nunca de vinculação do sujeito passivo-contribuinte, que na falta de previsão para aquela, impedia exigência como a feita nestes autos.
Acrescente-se ainda, que em recente decisão, julgando embargos do devedor, envolvendo ao que parece o mesmo fabricante dos barcos ora em exame, o Juiz da 2° Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, afastou a tributação, assim noticiado no Jornal "Gazeta Mercantil" de 8.11.91:
"Na sua explicação da sentença favorável ao contribuinte, o Juiz Matias Washington de Oliveira Negry, da 2° Vara da Fazenda Pública Estadual, argumenta que a controvérsia gira em torno da classificação das embarcações. Se forem utilitárias são isentas do ICMS. Se esportivas, a execução se embasa em crédito legítimo. Restaria portanto, determinar qual a classificação que remete para a legislação específica o Dec. n° 87.648/82, que delega à Diretoria de Portos e Costas a competência para fazer esta classificação.
NATUREZA DO BEM
O Juiz entendeu que a classificação para fins tributários tem necessariamente que decorrer da natureza do bem, e nunca de sua destinação, já que qualquer bem, ainda que desenvolvido para fins utilitários possa vir a ter destinação esportiva. Assim, tendo as embarcações recebido a caracterização de utilitários pelo órgão competente, assim devem ser consideradas, o que isenta sua comercialização do pagamento do ICMS."
A meu ver, com outras palavras disse o julgador que para ele basta o que Pontes de Miranda classificou de destino objetivo, isto é, aptidão para determinado fim, pouco importando a real destinação, pois a natureza do bem nada mais é do que o conceituado pelo referido jurista.
Pelo exposto, dando ciência de que nos autos se encontram decisões administrativas afastando a tributação em casos análogos, dou provimento ao recurso.
É o meu voto.
Sala das Sessões, em 19 de março de 1992.
a) Celso Alves Feitosa, Relator.
VOTO EM SEPARADO
Pedi vista deste processo para melhor poder expressar o ponto de vista que tenho sobre a matéria, divergente, "data venia", da orientação tão brilhantemente expressa pelo relator.
É que a classificação das embarcações que vem servindo de base para a discussão da matéria neste processo não decorre nem da natureza delas nem de definição técnica ou mesmo legal, mas, como ficou consignado na resposta à Consulta n° 916/81 - dada à própria recorrente - simplesmente dos próprios critérios desta, à luz dos seus interesses. A classificação "uso misto - passageiros/carga" não define, não preestabelece a destinação das embarcações que, assim, não podem ser consideradas "a priori" de uso diverso do de esporte e recreio como quer a recorrente. Daí ser imprescindível a prova da efetiva destinação, prova esta ausente dos autos.
Para não me alongar desnecessariamente, invoco aqui o voto proferido pelo Juiz Fernando José Labre de França, no proc. DRT-5 n° 12427/87, julgado na sessão da 5ª Câmara de 12.9.89, objeto da ementa n° 4934, estampada no Boletim TIT n° 266, de 5.9.92, na qual expõe com toda propriedade as razões que informam também o meu entendimento sobre a matéria.
Isto posto, nego provimento ao recurso.
Sala das Sessões, em 29 de outubro de 1992.
a) Cássio Lopes da Silva Filho.
VOTO EM SEPARADO
Pedi vista deste processo para melhor inteirar-me de sua nuances, já que as teses em confronto foram brilhantemente expostas.
O que se discute é se a recorrente teria infringido a lei ao dar saída de barcos sob a isenção reservada a utilitários, aos quais o fisco nega essa configuração.
Em erudito trabalho o Dr. Celso Alves Feitosa analisa o alcance e os limites das isenções condicionadas, com citações de mestres, para concluir que, no caso, não teria havido afronta às normas, já que o instituto isencional atrela-se à aptidão incontrovertível do bem para o uso destinado.
Em não menos brilhante parecer o Dr. Cássio Lopes da Silva Filho preleciona que, no caso, a prova prévia da destinação não fora feita, mas seria necessária, uma vez que as características do tipo de barco não se lastreava em critérios técnicos, ou mesmo legais, mas subordinavam-se ao interesse da parte.
Com a devida vênia do Dr. Cássio, assumo que o interessado exauriu as providências que lhe eram cometidas para usufruir a isenção, não podendo ser responsabilizado por atos de terceiros.
É o ato, ou são atos praticados pelo contribuinte, que fará ou farão sobre ele recair as responsabilidades tributárias. É o que deflui do mandamento inserto no art. 136 do Código Tributário Nacional. Diz tal artigo:
"Art. 136 - Salvo disposições de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato."
A leitura do texto mandamental, sem esforços exegéticos permite afirmar que o contribuinte ou responsável pratique determinada ação, ou se abstenha, quando devia atuar, em atitude desconformidade à regência; isto é: que tenha praticado infração da lei. Para isso é necessário que a lei, ou a legislação, disponha em certo sentido e tenha o agente agido em outro.
No caso não lobrigo ação ou omissão do sujeito passivo desconformada a qualquer norma. Deu ele saída de barcos, previamente registrados como utilitários, e apôs nos documentos fiscais dizeres inequívocos segundo os quais destinavam-se eles a uso de acordo com a licença de construção expedida pela Capitania dos Portos. Quer dizer, fabricou barcos utilitários e destinou-os a fim determinado. Por isso entendo que não pode arcar com eventuais desvirtuamentos do uso.
Por isto que acompanho o voto do Dr. Celso Alves Feitosa.
Sala das sessões, em 26 de setembro de 1992.
a) Adermir Ramos da Silva.
RESUMO DA DECISÃO: recurso ordinário. Provido. Decisão não unânime. 2° Câmara. Proc. DRT-5 n° 3801/88.